domingo, 29 de maio de 2016

o Estado Islâmico por dentro

Cada vez  que um novo vídeo retratando ações do Estado Islâmico cai na rede, o mundo se choca. A organização ficou famosa por decapitar árabes cristãos e jornalistas ocidentais, queimar vivo um piloto jordaniano, afogar em um piscina supostos espiões, presos em uma gaiola, entre outros episódios. Mas o que está por trás da existência do grupo, para além das atrocidades que comete?
Fórum conversou com o jornalista irlandês Patrick Cockburn, correspondente do jornal The Independentno Oriente Médio e considerado o Melhor Repórter Estrangeiro em 2014 pela The Press Awards. No início deste ano, lançou o livro The Rise of Islamic State: ISIS and the New Sunni Revolution, sobre as circunstâncias em que se deu o surgimento do Estado Islâmico e a influência do Ocidente nesse processo. Em julho, a obra foi publicada no Brasil pela editora Autonomia Literária sob o título A origem do Estado Islâmico – O fracasso da “guerra ao terror” e a ascensão jihadista.
Para Cockburn, a efetividade do ISIS se deve a “uma mistura de fanatismo religioso e expertise militar”. Além disso, a fragmentação de seus inimigos contribui para que siga avançando, sem grandes percalços pelo caminho. “Não há muitos sinais de que exista uma dissidência interna [no Estado Islâmico], eles podem ser impopulares entre as pessoas que vivem nessa área, mas não há nenhum indício de uma resistência ativa contra eles. Possuem muitos inimigos externos, mas estes não estão unidos e têm prioridades diferentes”, explica.
Fórum – Em entrevista recente  você disse que o Estado Islâmico, apesar de muito violento, é mais eficiente do que o governo iraquiano. Poderia explicar isso melhor, por favor? O que o ISIS tem de diferente dos demais grupos que permite essa maior eficácia?
Patrick Cockburn – O ISIS é, essencialmente, um movimento militar. É claramente mais eficiente do que o governo iraquiano porque derrotou o exército daquele país muitas vezes. Isso ficou mais óbvio no final de 2013, quando o ISIS começou a operar em todos os lugares, desde a fronteira iraniana até quase o Mediterrâneo. O grupo derrotou inúmeras vezes o exército iraquiano em Mosul e, apesar dos ataques aéreos norte-americanos, conquistou Ramadi no início deste ano. Então, militarmente, o ISIS é muito mais eficiente. É, de fato, um Estado – temos que manter isso em mente –, no sentido de que forma soldados e mobiliza pessoas para defender suas fronteiras.
Fórum – Em seu livro, você fala das derrotas que o Estado Islâmico impõe aos inimigos com exércitos maiores e mais equipados. Como foi possível que o grupo jihadista tivesse êxito nessas batalhas? 
Cockburn – Penso que há dois elementos envolvidos nessa questão. Primeiro temos que discutir porque o ISIS é tão efetivo; em segundo lugar, porque o governo e o exército iraquiano são tão fracos. Por que o ISIS é efetivo? Acredito que seja uma mistura de fanatismo religioso e expertise militar. O ISIS vem da comunidade árabe sunita, que equivale a cerca 20% da população no Iraque e 60% das pessoas na Síria. Sua ideologia, na verdade, vem da Arábia Saudita – é uma ideologia bastante conservadora, que coloca as mulheres essencialmente como propriedade particular [dos homens] e que considera os xiitas como heréges. Muitas das coisas que o Estado Islâmico faz são uma versão exagerada do que acontece na Arábia Saudita: a posição das mulheres na sociedade, a destruição de monumentos… Então há muitas similaridades entre o ISIS e a Arábia Saudita. Em relação à expertise militar, penso que a maior razão para que exista é que o grupo vem lutando há muito tempo. Se você enfrenta os norte-americanos desde 2003 e também o exército iraquiano e sobreviveu a isso tudo, é porque provavelmente é muito bom no que faz.
Fórum – O Estado Islâmico na Síria surge da Al-Qaeda no Iraque. Como se deu esse processo? Qual a influência dos governos do Ocidente sobre essa questão?
Cockburn – A Al-Qaeda no Iraque – antes mesmo de ter esse nome – começou com o [Abu] Musab al-Zarqawi, que era ligado a Osama Bin Laden, mas tinha diferenças em relação a ele. Zarqawi era mais extremo, mais anti-xiita, mais intolerante e violento. Ele apelou para a comunidade sunita, entre 2003 e 2004, porque tinha recursos e dinheiro vindo de doadores externos, e eles tinham experiência e sabiam como lutar. Mas, desde o começo, sua agenda foi bastante sectária. Como eles [Al-Qaeda]sobreviveram? Contaram com o apoio de fora, de simpatizantes estrangeiros, e, ao mesmo tempo, o governo iraquiano sempre foi fraco e inacreditavelmente corrupto. Ninguém se tornava um oficial do exército iraquiano sem pagar uma taxa: para ser um coronel, era necessário pagar algo como duzentos mil dólares; para ser um general, a quantia a ser paga podia chegar a dois milhões de dólares.
Essas valores eram cobrados porque eram uma forma de se fazer dinheiro. Os comandantes afirmavam ter um batalhão de 600 homens, quando na realidade tinham apenas 150 – recebiam os recursos para a comida e os suprimentos equivalentes aos supostos 600 e se apropriavam do dinheiro direcionado para esses soldados que não exisitam. Isso é algo que os iraquianos chamavam de “soldados de areia”. 
O governo iraquiano admitiu recentemente que havia cerca de 50 mil destes, e o número verdadeiro provavelmente é maior. Então havia um exército completamente corrupto.
Alguns políticos iraquianos que conheço me diziam, há três ou quatro anos, que esse exército nunca lutaria. E eu dizia, “certamente algumas unidades iriam lutar”. Mas eles afirmavam que não, pois as pessoas se tornavam oficiais no exército iraquiano para fazer dinheiro, não para lutar contra alguém. Isso se provou verdadeiro.
Fórum – Por que há tantos europeus aderindo às fileiras do Estado Islâmico?
Cockburn – Acho que é necessário termos um senso de proporcionalidade. No Reino Unido, existem 2,8 milhões de muçulmanos, e menos de mil saíram do país para lutar pelo Estado Islâmico. Na França, acredito que o número seja de mais ou menos 4 milhões de muçulmanos, novamente a proporção [de recrutas do Estado Islâmico] é pequena.
Quando um pequeno número de britânicos se junta ao Estado Islâmico, o fato atinge uma repercussão gigantesca. Um exemplo foi quando três garotas viajaram para lá através da Turquia: elas receberam um tratamento de estrela de cinema em termos de publicidade.
Então, não acho que esse movimento seja tão intenso como as pessoas dizem. É claro que isso consequentemente parece ser muito dramático, mas tenha em mente que o Estado Islâmico sempre foi muito habilidoso em dominar as pautas de notícias ao conduzir suas atrocidades: como cortar a cabeça de jornalistas e assistentes humanitários em frente às câmeras, ou massacrar turistas britânicos em uma praia na Tunísia. E quando as pessoas se acostumaram às notícias de cabeças sendo cortadas, o Estado Islâmico começou a queimar pessoas vivas, como aquele piloto jordaniano queimado em uma jaula. Eles não se importam em ser odiados por muitas pessoas, pois também as amedrontam, colocam medo em seus inimigos. Isso [as atrocidades] é como um ato de desafio, é como mostram sua força.
Os estrangeiros que vão para o Estado Islâmico, como alguns britânicos, não falam árabe e não possuem treinamento militar, então não têm muita utilidade além de propaganda e servirem como homens-bomba – e é para esses suicídios com bomba que eles geralmente são usados. O Estado Islâmico é bem conhecido por usar homens-bomba para matar civis ou durante batalhas, e são os estrangeiros que são utilizados, em vez de nacionais iraquianos ou sírios.
Há ainda um outro ponto que as pessoas geralmente não entendem sobre esses voluntários estrangeiros. O Estado Islâmico é muito desconfiado de qualquer estrangeiro aparecendo ali. Alguns de fato querem se voluntariar para lutar na guerra, mas eles [o Estado Islâmico] sabem que pode haver agentes secretos infiltrados. Por isso, o EI nunca confia em nenhuma dessas pessoas, com exceção talvez dos chechenos, que têm anos de experiência em combate. Pessoas aparecendo do Reino Unido, França ou qualquer outro lugar assim dificilmente terão a confiança imediata deles.
Fórum – O Estado Islâmico dissemina muitos vídeos de suas ações na internet. Isso significa que o grupo está mais conectado com as novas tecnologias? Se sim, isso o ajudou de alguma maneira?
Cockburn – Sim. No ano de 2011, durante a Primavera Árabe, as novas tecnologias tinham como objetivo ser algo progressista, que servisse para derrubar ditaduras. Mas, na realidade, as pessoas que as utilizam de maneira mais efetiva são do Estado Islâmico para, como eu já disse, espalhar o terror mostrando suas atrocidades, e também para alcançar possíveis simpatizantes ou voluntários, circundando os principais canais de televisão e agências de notícias e rádio.
Fórum – Como já mencionou, o Estado Islâmico sequestra a mata jornalistas. De que forma teve acesso a tantas informações para escrever seu livro?
Cockburn – Ainda é possível descobrir o que está acontecendo dentro do Estado Islâmico sem ter de ir até lá. Estive agora em Kobani, a cidade que eles atacaram e falharam em capturar, no começo do ano. Vivo a menos de 100 quilômetros de Raqqa, capital do Estado Islâmico. Tentei conseguir essas informações daqui e através das pessoas que, por variadas razões, abandonam a organização, para tentar ter uma visão objetiva do que está acontecendo dentro dela, o que espero ter conseguido fazer.

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