segunda-feira, 30 de maio de 2016

A arriscada política da Arábia Saudita

O rei Salman conversa com seu filho Mohamed Bin Salman, em 2012. 16.1.2016  -  Às vésperas da chegada ao poder do rei Salman completar um ano, a Arábia Saudita gerou mais manchetes que durante toda a década anterior. E não (apenas) sobre a lamentável situação dos direitos humanos ou a segregação das mulheres, mas também, surpreendentemente, por sua política externa. Com a intervenção no Iêmen, o novo monarca deu uma guinada na tradicional discrição que o Reino do Deserto até então adotava para fazer seus interesses avançarem e minar os de seus rivais. A tal ponto que no mês passado o serviço secreto alemão (BND) tomou a decisão, não usual, de emitir nota alertando que o país se arrisca a desestabilizar o mundo árabe.

O BND atribui a nova política de “intervenção impulsiva” às lutas internas dos Al Saud e ao desejo de liderar o mundo árabe. Uma semana somente depois de subir ao trono, Salman redistribuiu o poder entre os diferentes ramos da família real, pondo homens de sua confiança no sistema de segurança. Mas a nomeação mais importante foi a de seu filho favorito, Mohamed Bin Salman, como segundo na linha sucessória, ministro da Defesa e presidente da macrocomissão encarregada da reforma econômica e da empresa nacional de petróleo, Aramco.
Nunca antes um príncipe tinha acumulado tanto poder. Isso e sua juventude -apenas 30 anos numa sociedade que vincula a idade à sabedoria (o rei tem 80)- provocaram receios, levando até a que príncipes de destaque escrevessem cartas pedindo a substituição do monarca. Muitos analistas atribuem à inexperiência de seu filho as decisões mais arriscadas, como a guerra no Iêmen.
Logo ficou claro que o Iêmen era só o começo. A doutrina Salman, como a batizou o colunista saudita Jamal Khashoggi, estende-se por toda a região. Quase ao mesmo tempo que Riad montava a todo vapor a coalizão para frear os rebeldes Huthi num país que considerava como seu quintal, tentava também formar uma força militar árabe e reforçar economicamente seus aliados sacudidos pelas primaveras, em especial o Egito. Mais recentemente anunciou uma grande coalizão islâmica de combate ao terrorismo de tão incerta materialização como o outro projeto. Também na Síria, onde desde 2011 financia grupos contrários a Bashar al-Assad, redobrou sua aposta, com a criação de uma nova força para se juntar a eles, a Jaish al Fatah. Essa repentina necessidade de tomar a iniciativa e agir vem da convicção da monarquia de que os Estados Unidos, seu protetor histórico (e o Ocidente em geral), abandonaram o reino face ao extremismo do Estado Islâmico (EI) e do expansionismo do Irã. A obsessão com esse vizinho não árabe com que a Arábia Saudita disputa a hegemonia   regional chegou ao paroxismo e é subjacente ao enfrentamento sectário entre xiitas (apadrinhados por Teerã) e sunitas (patrocinados por Riad), que faz o Oriente Médio sangrar.
Numerosos sauditas, e não apenas da família governante, sentem que o Irã se beneficiou das mudanças estratégicas ocorridas na região desde o início deste século. As intervenções militares dos EUA no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003), as revoltas da primavera árabe (2011) e, finalmente, o acordo nuclear foram derrubando os muros que continham o regime iraniano, que tem estendido sua influência graças à afinidade religioso-cultural com as comunidades xiitas. Por isso a maioria aplaudiu a intervenção no Iêmen, incluindo os islamitas (sunitas) dissidentes.
Pela mesma razão, fora da minoria xiita (cerca de 10% dos 20 milhões de sauditas), há críticas apenas à recente execução do xeque Nimr Baqr al Nimr, que provocou o último atrito com o Irã e o rompimento das relações diplomáticas. No exterior, alguns observadores comparam o reino a um animal ferido e falam numa saída adiante capaz de desencadear uma guerra. Isso não interessa aos Al Saud, concentrados em preservar o poder nas mãos da família. “Uma guerra entre Arábia Saudita e Irã [seria] o começo de uma catástrofe maior na região e teria graves efeitos sobre o resto do mundo”, admitiu o príncipe Mohamed em entrevista à revista The Economist. “Não permitiremos isso.”
Na verdade, a maior ameaça ao regime saudita não vem da outra costa do golfo Pérsico, e sim dos ultraconservadores de sua própria maioria sunita, entre os quais historicamente busca sua legitimidade. Esses setores, hostis ao Irã xiita e aos ativistas que, como o xeque Al Nimr, defendem os direitos civis, são ideologicamente muito próximos dos extremistas que já atacaram o reino, primeiro sob a bandeira da Al Qaeda e mais recentemente, do EI.
Assim, para a monarquia, reanimar a tradicional inimizade com o Irã e com os xiitas tem também uma utilidade interna –mostrar-lhes que está do seu lado e que não precisam de outro padrinho. Especialmente num momento crítico como o atual, em que o delicado processo de sucessão dos filhos pelos netos de Abdulaziz Ibn Saud, o fundador do moderno reino saudita, coincide com uma situação econômica que exige profundas reformas devido aos baixos preços do petróleo.
Esse maná financiou um generoso Estado de bem-estar, que os sauditas consideram um direito de nascença, em troca de renunciar à participação política. Com o barril de petróleo rondando os 30 dólares, é impossível manter um sistema que, além de ser muito caro, gera indolência e apatia entre seus beneficiários. O desafio que precisa ser enfrentado por Salman, que o delegou a seu filho, é conseguir a transformação de uma economia rentista numa moderna e competitiva, sem ceder o poder absoluto da família. Por isso, busca o apoio público.
O confronto com o Irã é uma aposta muito perigosa. Sem tirar do último sua cota de responsabilidade em algumas crises regionais, corre o risco de aumentar seu envolvimento até onde é mais baixo do que se pretende e de converter o sectarismo num monstro com vida própria. Mesmo descartando o extremo da guerra entre os dois rivais, as consequências da deterioração de suas relações já afetam a região.
Mais evidente que tudo é a incapacidade de cooperação entre os dois na luta contra o Estado Islâmico, um inimigo comum. Enquanto Teerã o considera fruto da ideologia wahabita (estrita interpretação do islamismo oficial no reino) e do financiamento pelas petromonarquias, Riad o vê como reação à brutalidade de Al-Assad na Síria e às políticas sectárias do ex-primeiro-ministro Nuri al Maliki no Iraque, ambos aliados do Irã. Isso alimenta o receio saudita frente à pressão ocidental para chegar a um acordo com o presidente sírio que permita derrotar o EI, o que, em sua opinião, daria asas ao Irã.  Embora a disputa se estenda a outros conflitos na região, é na Síria que se disputa a partida principal. As próximas conversações sobre esse país, previstas para Genebra antes do fim do mês, mostrarão até que ponto há a vontade de chegar a um compromisso, ou há o risco de a má vontade se tornar um (perigoso) modo de vida. As mensagens até agora são contraditórias.

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