terça-feira, 18 de outubro de 2016

Petróleo e gás na Rússia – passado, presente e futuro

A indústria do petróleo na Rússia origina-se em meados do século XIX quando o então Canato de Baku, situado às margens do Mar Cáspio, transformou-se em uma verdadeira Meca do petróleo. Poucos sabem, mas foi graças ao empreendedorismo de três irmãos suecos – até então desconhecidos do grande público, Ludwig, Alfred e Robert Nobel – que a cidade azeri tornou-se a maior produtora deste hidrocarboneto no mundo. Os irmãos Nobel foram os pioneiros em conceber uma nova dinâmica ao florescente negócio naquela região atrasada do mundo: construíram as primeiras refinarias privadas, assentaram o primeiro oleoduto e distribuíram o petróleo russo via navios-petroleiros construídos pelos próprios suecos.
Até então, carregava-se o petróleo de Baku em barris sobre o lombo de burricos. De acordo com a pesquisadora sueca Brita Asbrink, quando Alfred Nobel criou, em 1901, o prêmio que contém o nome de sua família, parte dos recursos que custearam este projeto – que perdura até hoje, como é sabido – provinha da empresa de petróleo dos irmãos Nobel, a Nobel Brothers Petroleum Company ou Branobel, como ficou conhecida entre os russos, uma corruptela de Bratiá Nobel, ou Irmãos Nobel em português. Pois Baku, uma antiga e esquecida cidade nos confins meridionais do velho império czarista, logrou a façanha de superar um país inteiro, os Estados Unidos da América, até então lideres mundiais na produção de petróleo, graças à mitológica Standard Oil Company, fundada em 1870 pelo não menos mitológico John Davison Rockefeller. A situação da então nascente e próspera indústria do petróleo local tomou um rumo dramaticamente diferente com a queda do czarismo em 1917 e posterior fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922. Com a planificação e coletivização compulsórias da economia por decreto de Lenin, todos os empreendimentos, refinarias, oleodutos e afins na região de Baku foram estatizados pelo governo soviético sem quaisquer compensações ou reparações a seus antigos proprietários, como os irmãos Nobel, por exemplo. Pelo contrário. Não foram poucas as violências cometidas pelos bolcheviques durante os tempos de confisco.
Apesar das profundas mudanças políticas, o petróleo permaneceu soberano, assim como nos tempos dos czares, constituindo a pilastra econômica mais sólida e confiável da União Soviética. Com o fim da antiga superpotência em dezembro de 1991, a recém-formada Federação Russa não podia mais contar com os importantes centros produtores de petróleo e gás natural da era soviética, como o Azerbaijão, a bacia de Shah Deniz, no Mar Cáspio, as imensas reservas de gás natural do Turcomenistão e os ainda inexplorados e promissores campos do Cazaquistão. Para o Kremlin, não era mero detalhe explorar e descobrir outras regiões que contivessem em suas entranhas o ouro negro. Era uma questão de sobrevivência.
O eixo do petróleo e gás natural começou a tomar outro rumo na antiga União Soviética com a descoberta de uma gigantesca reserva na Sibéria em 1965, na região de Tyumen: o campo de Samotlor, hoje controlado pela companhia anglo-russa TNK-BP. Trata-se de um colosso com centenas de quilômetros quadrados. Até hoje, um dos maiores campos petrolíferos do planeta, apesar de 47 anos ininterruptos de exploração. Habitar ou explorar uma região antologicamente conhecida por ser tão erma e inóspita como a Sibéria sempre foi um desafio. Se durante o famoso inverno siberiano atingem-se facilmente temperaturas próximas a 60 graus negativos, durante o verão, a tundra siberiana descongela-se parcialmente, com a formação de pântanos com enxames de mosquitos e outros insetos, tornando a vida dos moradores locais um constante desafio às leis de Darwin.
Mas a necessidade russa de aumentar as suas combalidas receitas durante os caóticos anos 90 fez Vladimir Putin, ao assumir o poder em 2000, mudar inteiramente a atitude do Kremlin para com a sua maior preciosidade. O antigo Ministério do Petróleo e Gás soviético havia sido desmembrado em uma série de novas corporações como a Gazprom, Yukos, SIDANKO, ONAKO, RUSIA Petroleum, Slavneft ( estas quatro últimas, junto com a inglesa BP, foram agrupadas em uma única companhia nos anos de 2003 e 2004, a Tyumenskaya Neftyanaya Kompaniya/British Petroleum ou TNK-BP ), Lukoil, Sibneft, Rosneft, Surgutneftgaz, Tatneft e Bashneft, sendo privatizadas – ou roubadas, de acordo com muitos russos – em sua grande parte durante o turbulento governo de Boris Yeltsin. Explicação etimológica: “neft” em russo significa petróleo.
Quando o assunto é petróleo, sempre foi e continua sendo complicado fazer negócios com os russos. A coisa se torna ainda mais difícil quando o petróleo é extraído no país deles. Todas as grandes companhias de petróleo do mundo sabem disso, mas também sabem que não podem ter a ousadia de impor quaisquer exigências “desagradáveis” ao Kremlin, sob pena de não participarem de um dos últimos eldorados do ouro negro do mundo. Nos anos 90, a BP inglesa teve um investimento de mais de US$ 500 milhões na antiga SIDANKO, digamos, “furtado” por seus parceiros russos. Pode parecer um contrassenso, mas os ingleses decidiram passar uma borracha no passado conturbado que tiveram com os seus antigos sócios e fazer novamente negócios com as mesmíssimas pessoas que desfalcaram a companhia britânica na era Yeltsin. Fácil entender: uma companhia de petróleo vale tanto quanto tem de reservas provadas em suas mãos. Como há pouquíssimos lugares ainda “virgens” disponíveis e/ou financeiramente factíveis, a proverbial fleuma britânica da BP não resistiu e teve de se sujeitar à maneira pouca ortodoxa dos russos nos negócios. É o tal “russkie bizinetz”, onde só um lado ganha, ou seja, sempre os eslavos.
Vladimir Putin percebeu que, apesar de seu país ser um dos maiores produtores e exportadores mundiais de petróleo e gás natural, menos de 15% desse negócio estava nas mãos do Estado. A maior parte do bolo pertencia aos chamados oligarcas, como Mikhail Khodorkovsky (Yukos), Vagit Alekperov e Leonid Fedun (Lukoil), Boris Berezovsky e Roman Abramovich (Sibneft), Mikhail Fridman e Viktor Vekselberg (TNK-BP) e Vladimir Bogdanov (Surgutneftgaz). A fim de resgatar a Rússia da enorme decadência pós-soviética em que se encontrava, era crucial reavivar a economia e eliminar o mandarinato político que exerciam os oligarcas.
Segundo o projeto de Vladimir Putin, isso só seria possível realocando a maior parte dos recursos energéticos do país sob o pálio do Kremlin e retirando de cena aqueles magnatas que se opusessem ao planos do governo. Se necessário fosse, a ferro e fogo. E assim, um implacável e draconiano Vladimir Putin foi como um rolo compressor atrás deste objetivo. Em 2000, o oligarca mais poderoso da Rússia, Boris Berezovsky, então aliado e mentor de Putin, exilou-se em Londres. A Procuradoria de Justiça de Moscou incriminava-o em um cipoal de denúncias: participação em máfias, inúmeras fraudes fiscais, assassinatos de jornalistas – como o do famoso apresentador da TV russa Vladislav Listyev – e empresários, envolvimento com a guerrilha separatista chechena, dentre outras acusações graves.
Com a sua prisão uma mera questão de tempo, isolado e sem poder contar com o seu agora inimigo Vladimir Putin, o polêmico oligarca vendeu o que pôde ao seu antigo protegido e sócio, e agora igualmente inimigo, Roman Abramovich e fugiu. Com isso, Abramovich, aliando-se ao interesses de Vladimir Putin, passou a ser o único dono da gigante Sibneft. Em 2005, em um jogo de cartas marcadas, o proprietário do clube de futebol inglês Chelsea vendeu à Gazprom – na qual o governo é acionista majoritário – a sua participação acionária na empresa. A Sibneft foi extinta pelo Kremlin e formou-se a Gazprom Neft. Vitória de Putin.
Próximo passo, Mikhail Khodorkovsky, então o homem mais rico do país foi preso em um aeroporto na Sibéria em 2003 sob alegações semelhantes às de Berezovsky: mandante de assassinatos de rivais políticos e de negócios, fraude e evasão fiscal em massa. Bilhões de dólares em impostos e taxas atrasados. A solução? Liquidar a então maior empresa privada de petróleo do país, a Yukos. O comprador? A estatal Rosneft. Os defensores do antigo magnata alegam perseguição política. Khodorkovsky atualmente está preso em uma penitenciária na Carélia, próximo à fronteira com a Finlândia, até 2017. Todos os pedidos de vistas de seu processo ou perdão pelo governo russo foram categoricamente recusados até o momento.
A prisão de Khodorkovsky, apesar de muitos considerarem uma vitória de Pirro de Vladimir Putin, cristalizou o retorno inequívoco do Kremlin a um “quase-monopólio” sobre as imensas reservas energéticas russas, evocando, ao menos parcialmente, os tempos de domínio absoluto do setor pela antiga União Soviética. Além disso, também serviu como um importante recado de Putin aos demais oligarcas: as empresas que estes bilionários detêm (adquiridas – em sua imensa maioria – através da ilegalidade durante a era Yeltsin, diga-se de passagem) apenas permanecerão com os atuais donos enquanto estes colaborarem com o governo. Caso contrário, perderão tudo. Inclusive a própria liberdade.
Uma das principais políticas de Vladimir Putin é promover as empresas petrolíferas russas – estatais ou privadas, não importa – em “national champions”. Em outras palavras, corporações de âmbito global que operam nos mais diversos países, projetando desta maneira os próprios tentáculos geopolíticos do Kremlin mundo afora. Assim o fazem as firmas americanas – do setor de energia ou não – há muitas décadas. A maior empresa petrolífera privada da Rússia, a Lukoil, atua em lugares tão díspares como Iraque, Irã, Bélgica, Bulgária, Turquia, Colômbia, Venezuela, Uzbequistão e Egito. Além de ser dona de milhares de postos de combustível nos EUA, quando adquiriu as operações da Getty Oil em 2000 e as operações da Exxon-Mobil em Nova Jersey e Pensilvânia, em 2004.
Os russos, desde os tempos czaristas, sempre viram com enorme desconfiança a participação de estrangeiros no “seu” petróleo. Vladimir Putin, a contragosto, aprovou a aquisição de 20% da Lukoil pela americana ConocoPhillips em 2004, assim como 50% na TNK também em 2004 pela inglesa BP. A francesa Total é dona de 12% da Novatek, segunda maior empresa de gás natural do país. Apesar desta “invasão estrangeira” aos olhos de Vladimir Putin, que chegou a dizer que o acordo assinado entre a russa TNK e a londrina BP mais se assemelhava a um “tratado colonial”, os russos sabem que não há outra saída. O país possui reservas de hidrocarbonetos valiosíssimas, mas localizadas em territórios inóspitos, com clima inclemente a maior parte do ano, cuja obtenção com eficiência e segurança ambiental só pode ser obtida mediante a participação de empresas estrangeiras, detentoras de tecnologia de perfuração e extração em condições extremas de temperatura e profundidade que os russos ainda não possuem.
Em agosto de 2011, foi anunciada uma parceria estratégica para a exploração do Mar de Barents, considerado a “Arábia Saudita do Ártico”, entre a estatal Rosneft e os eternos “inimigos americanos” da Exxon-Mobil, não apenas a maior empresa de petróleo do planeta, mas a mais valiosa dentre todas as empresas do mundo. Em abril deste ano, a italiana ENI, velha parceira dos russos desde os tempos soviéticos, também confirmou a sua participação no projeto. Além disso, deve-se mencionar a faraônica empreitada, a tapas e pontapés, entre o Kremlin e a Shell desde 2002, nas Ilhas Sakhalinas, reserva de enormes depósitos de gás natural de imenso potencial econômico. O Japão está logo ali, a poucos quilômetros de distância ao sul, e necessita desesperadamente de novas fontes energéticas, após a hecatombe com o reator nuclear de Fukushima.
Segundo especialistas, é altamente provável que os japoneses sejam forçados a abdicar de grande parte de suas usinas nucleares (nota: nesta semana, o Japão desativou, possivelmente para sempre, seu último reator nuclear), face à sempre iminente possibilidade de novas tragédias naturais. Para não perder tempo, a Mitsui e a Mitsubishi juntaram-se a Shell e a Gazprom em 2006. A condição dos russos à participação estrangeira invariavelmente é: aos russos, sempre com a maior fatia de lucros futuros, mas sempre com os menores custos operacionais – sempre gigantescos – em projetos desta envergadura. Assim que iniciar à distribuição de gás natural sob, muito provavelmente, a forma LNG, Coréia do Sul, China e até a Índia – economias altamente dependentes da importação de energia – certamente serão prospectadas como futuros clientes.
Portanto, por mais que o Kremlin saiba que é fundamental diversificar e modernizar a economia russa para um maior desenvolvimento do país como um todo – e alguns passos, um tanto modestos ainda, estão sendo dados nesta direção, como o fomento às indústrias de alta tecnologia e setor de serviços – não resta sombra de dúvida quanto ao profundo “gosto russo” pela riqueza que sempre o alimentou e que provém das profundezas de seu subsolo, desde tempos preteritamente longevos: o velho e valioso petróleo.

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