17.4.2016 - Sabe aquelas perguntas que surgem em todo ano eleitoral em
torno do candidato a prefeito, governador, senador e presidente? “É a favor da
descriminalização do aborto?”. “E das drogas?”. “E da pena de morte?”. “E das
cotas?”. “E do casamento igualitário?”. “E da liberação dos transgênicos?”.
“Qual seu plano para a educação?”. “E para a saúde?”. “E para a segurança?”.
“Qual a sua religião?”. Parte das perguntas nem sempre são convenientes ou tem
a ver com o cargo em disputa, mas ajuda o eleitor a formar uma opinião em
relação à “pessoa” que se apresenta como postulante a gerir seus dilemas
públicos. Não tem marqueteiro, por mais bem pago, que dê conta de tamanha
bateria de perguntas e exposição se o candidato for uma fraude. A depender do
que decidir neste domingo, 17/04, a
Câmara dos Deputados dará um passo enorme, com o envio do processo de
impeachment ao Senado, para “eleger” presidente alguém de quem a
maioria da população até pouco tempo mal sabia o nome – graças, é óbvio, a uma
cultura eleitoral que não discute a possibilidade de vacância do cargo (logo,
não se interessa pelos candidatos a vice) e à incapacidade do governo atual
para diferenciar aliados de oportunistas. Caso o processo de impeachment tenha
prosseguimento, o Brasil pode ter em breve um presidente que jamais passou pelo
crivo das sabatinas necessárias aos candidatos a cargo eletivo. Por sua
natureza “discreta” e silenciosa, não sabemos a opinião de Michel Temer a
respeito de uma série de questões que consideramos fundamentais, mas sabemos o
que pensa o seu entorno. Muito se fala
da ficha criminal colada na testa do presidente da Câmara, Eduardo Cunha
(PMDB-RJ), antagonista declarado do governo e o maior protagonista, até aqui,
do processo de impeachment. É uma preocupação legítima – na véspera da votação,
o jornalO Estado de S.Paulo revelou
que ele reclamava quando o pagamento de propinas relacionadas às obras do Porto
Maravilha, do Rio, atrasava – mas insuficiente: deixa como contraponto uma
falsa sensação de que o outro lado é puro, injustiçado ou vítima de uma armação
midiático-televisiva. Dilma Rousseff, até onde se sabe, não enriqueceu com o
esquema na Petrobras, mas, até onde se sabe, foi eleita com a ajuda, direta ou
indireta, do esquema instalado na ali - e do qual petistas, peemedebistas e
demais aliados se refastelaram enquanto sobrava a farinha para o pirão. As
acusações levantadas pela Lava Jato nivelam alvos e algozes por baixo. Onde
eles se diferenciam? Nos projetos que representam. Por mais apertado que tenha
sido o resultado das urnas, Dilma foi eleita e reeleita graças a um
compromisso, por mínimo que fosse, com um projeto de inclusão, com índices
ainda favoráveis aos governos petistas em relação a temas como combate à
miséria, numa ponta, e ações afirmativas, na outra. Na formação destes governos
havia espaço, por insuficientes que sejam, para debates de políticas públicas
relacionadas a mulheres, negros, gays, desenvolvimento agrário e direitos
humanos, espalhados em secretarias em status de ministério ou colegiados como o da
Comissão Nacional da Verdade. Institucionalmente, esses espaços servem como
abrigo, por frágil que seja, de demandas violentamente reprimidas ao longo da
história. Qualquer candidato a presidente não teria chances de se eleger sem
deixar clara a sua orientação em relação a esses temas e demandas – que, além
de questões orçamentárias, orientam os deveres do poder público em relação ao
destino de milhões de pessoas. Não se sabe o que o atual vice-presidente pensa
a respeito dessas questões. Mas se sabe o que o futuro “vice”, o segundo na
linha de sucessão, pensa. Cunha, quando se ocupava de uma agenda no
Congresso que não a do impeachment, teve a chance de demonstrar sua visão de
mundo segundo a qual os adultos devem ser protegidos dos adolescentes, e não o
contrário; heterossexuais que jamais tomaram pedrada na rua em razão de sua
orientação sexual devem ser protegidos em estatutos da família e dias de
orgulho hétero, e não as vítimas reais da intolerância; patrões devem ser
protegidos das leis trabalhistas, e não os empregados protegidos por elas;
fazendeiros com representação no Congresso devem decidir pela demarcação de
terras indígenas, e não ambientalistas e indígenas sem representação no
Congresso; homens devem decidir o que mulheres devem fazer com seus corpos ou
como devem ser atendidas na rede pública em caso de estupro, e não elas
próprias. No entorno da dupla Temer-Cunha surge uma multidão que, por um
malabarismo retórico, consegue colocar pautas igualitárias como uma ameaça aos
valores tradicionais e hegemônicos da sociedade. Deste lado não pipocam apenas
discursos anticorrupção, em que pese a ficha criminal de parte de seus
protagonistas, mas também discursos e projetos notadamente homofóbicos, misóginos
e delirantes em relação a supostasditaduras feministas, esquerdistas,
ateístas, gayzistas, abortistas, etc. Isso num país em que os supostos
beneficiados da “ditadura” morrem aos baldes nas ruas, clínicas ou dentro de
casa. (Obviamente nem todos os que defendem o impeachment são fãs de Bolsonaro
e companhia, mas todos os fãs de Bolsonaro e companhia encontraram abrigo nesta
pauta). Por mais indefensável que seja qualquer lado da história, qualquer
resultado que fortaleça Eduardo Cunha e seu grupo político representará algo
mais do que uma mera queda de braço. Será a vitória da intolerância. É o que
ajuda a entender por que Chico Buarque está de um lado e Alexandre Frota, de
outro. O epílogo mais lamentável de toda a história é ver que justamente um
governo em frangalhos pela própria incompetência e corrupção (e que lançou mão
de recursos indefensáveis para chegar e se segurar no comando) seja hoje talvez
o último referencial simbólico a proteger, na esfera pública, grupos
historicamente marginalizados das forças historicamente dispostas a
destruí-los.
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