segunda-feira, 18 de abril de 2016

Como será o Brasil de Temer

17.4.2016  -  Sabe aquelas perguntas que surgem em todo ano eleitoral em torno do candidato a prefeito, governador, senador e presidente? “É a favor da descriminalização do aborto?”. “E das drogas?”. “E da pena de morte?”. “E das cotas?”. “E do casamento igualitário?”. “E da liberação dos transgênicos?”. “Qual seu plano para a educação?”. “E para a saúde?”. “E para a segurança?”. “Qual a sua religião?”. Parte das perguntas nem sempre são convenientes ou tem a ver com o cargo em disputa, mas ajuda o eleitor a formar uma opinião em relação à “pessoa” que se apresenta como postulante a gerir seus dilemas públicos. Não tem marqueteiro, por mais bem pago, que dê conta de tamanha bateria de perguntas e exposição se o candidato for uma fraude. A depender do que decidir neste domingo, 17/04, a Câmara dos Deputados dará um passo enorme, com o envio do processo de impeachment ao Senado, para “eleger” presidente alguém de quem a maioria da população até pouco tempo mal sabia o nome – graças, é óbvio, a uma cultura eleitoral que não discute a possibilidade de vacância do cargo (logo, não se interessa pelos candidatos a vice) e à incapacidade do governo atual para diferenciar aliados de oportunistas. Caso o processo de impeachment tenha prosseguimento, o Brasil pode ter em breve um presidente que jamais passou pelo crivo das sabatinas necessárias aos candidatos a cargo eletivo. Por sua natureza “discreta” e silenciosa, não sabemos a opinião de Michel Temer a respeito de uma série de questões que consideramos fundamentais, mas sabemos o que pensa o seu entorno.  Muito se fala da ficha criminal colada na testa do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), antagonista declarado do governo e o maior protagonista, até aqui, do processo de impeachment. É uma preocupação legítima – na véspera da votação, o jornalO Estado de S.Paulo revelou que ele reclamava quando o pagamento de propinas relacionadas às obras do Porto Maravilha, do Rio, atrasava – mas insuficiente: deixa como contraponto uma falsa sensação de que o outro lado é puro, injustiçado ou vítima de uma armação midiático-televisiva. Dilma Rousseff, até onde se sabe, não enriqueceu com o esquema na Petrobras, mas, até onde se sabe, foi eleita com a ajuda, direta ou indireta, do esquema instalado na ali - e do qual petistas, peemedebistas e demais aliados se refastelaram enquanto sobrava a farinha para o pirão. As acusações levantadas pela Lava Jato nivelam alvos e algozes por baixo. Onde eles se diferenciam? Nos projetos que representam. Por mais apertado que tenha sido o resultado das urnas, Dilma foi eleita e reeleita graças a um compromisso, por mínimo que fosse, com um projeto de inclusão, com índices ainda favoráveis aos governos petistas em relação a temas como combate à miséria, numa ponta, e ações afirmativas, na outra. Na formação destes governos havia espaço, por insuficientes que sejam, para debates de políticas públicas relacionadas a mulheres, negros, gays, desenvolvimento agrário e direitos humanos, espalhados em secretarias em status de ministério ou colegiados como o da Comissão Nacional da Verdade. Institucionalmente, esses espaços servem como abrigo, por frágil que seja, de demandas violentamente reprimidas ao longo da história. Qualquer candidato a presidente não teria chances de se eleger sem deixar clara a sua orientação em relação a esses temas e demandas – que, além de questões orçamentárias, orientam os deveres do poder público em relação ao destino de milhões de pessoas. Não se sabe o que o atual vice-presidente pensa a respeito dessas questões. Mas se sabe o que o futuro “vice”, o segundo na linha de sucessão, pensa. Cunha, quando se ocupava de uma agenda no Congresso que não a do impeachment, teve a chance de demonstrar sua visão de mundo segundo a qual os adultos devem ser protegidos dos adolescentes, e não o contrário; heterossexuais que jamais tomaram pedrada na rua em razão de sua orientação sexual devem ser protegidos em estatutos da família e dias de orgulho hétero, e não as vítimas reais da intolerância; patrões devem ser protegidos das leis trabalhistas, e não os empregados protegidos por elas; fazendeiros com representação no Congresso devem decidir pela demarcação de terras indígenas, e não ambientalistas e indígenas sem representação no Congresso; homens devem decidir o que mulheres devem fazer com seus corpos ou como devem ser atendidas na rede pública em caso de estupro, e não elas próprias. No entorno da dupla Temer-Cunha surge uma multidão que, por um malabarismo retórico, consegue colocar pautas igualitárias como uma ameaça aos valores tradicionais e hegemônicos da sociedade. Deste lado não pipocam apenas discursos anticorrupção, em que pese a ficha criminal de parte de seus protagonistas, mas também discursos e projetos notadamente homofóbicos, misóginos e delirantes em relação a supostasditaduras feministas, esquerdistas, ateístas, gayzistas, abortistas, etc. Isso num país em que os supostos beneficiados da “ditadura” morrem aos baldes nas ruas, clínicas ou dentro de casa. (Obviamente nem todos os que defendem o impeachment são fãs de Bolsonaro e companhia, mas todos os fãs de Bolsonaro e companhia encontraram abrigo nesta pauta). Por mais indefensável que seja qualquer lado da história, qualquer resultado que fortaleça Eduardo Cunha e seu grupo político representará algo mais do que uma mera queda de braço. Será a vitória da intolerância. É o que ajuda a entender por que Chico Buarque está de um lado e Alexandre Frota, de outro. O epílogo mais lamentável de toda a história é ver que justamente um governo em frangalhos pela própria incompetência e corrupção (e que lançou mão de recursos indefensáveis para chegar e se segurar no comando) seja hoje talvez o último referencial simbólico a proteger, na esfera pública, grupos historicamente marginalizados das forças historicamente dispostas a destruí-los. 

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